terça-feira, 2 de outubro de 2012

Viagem pela América
Che Guevara
Em 1951, com 23 anos de idade, Guevara interrompe o curso de medicina, a seis meses do fim, e parte, com o amigo Alberto Granado, numa velha motocicleta, para uma viagem que durará nove meses, através da América do Sul, de Buenos Aires a Caracas. Divulgamos alguns excertos do seu relato dessa viagem.

– E se fôssemos à América do Norte?
– À América do Norte? Como?
– Com a Poderosa[1], homem!
Assim ficou decidida a viagem, que em todos os momentos se cumpriu de acordo com os princípios gerais com que fora traçada: improvisação. […]
(p. 9)

A descoberta do oceano
A lua cheia recorta-se sobre o mar e cobre as ondas de reflexos prateados. Sentados numa duna, miramos o contínuo vaivém com diferentes estados de espírito: para mim, o mar sempre foi um confidente, um amigo que absorve tudo o que lhe contam sem revelar nunca o segredo confiado e que dá o melhor dos conselhos: um ruído cujo significado cada um interpreta como pode; para Alberto é um espectáculo novo, que lhe causa uma perturbação estranha, cujos reflexos se percebem no olhar atento com que segue o desenrolar de cada uma das ondas que vão morrer na praia. Perto dos trinta anos, Alberto descobre o oceano Atlântico e sente nesse momento a transcendência da descoberta que lhe abre infinitas vias para todos os pontos do globo. O vento fresco impregna os nossos sentidos com o ar marinho, tudo se transforma perante o seu contacto, até o Come-back[2] mira, com o seu estranho focinhito esticado, a cinta prateada que se desenrosca, perante os seus olhos, várias vezes por minuto. Come-back é um símbolo e um sobrevivente: símbolo dos laços que exigem o meu regresso, sobrevivente da sua própria desdita, a duas quedas na mota em que voou, fechado na sua bolsa, ao pisotear de um cavalo que o “amolgou” e a uma diarreia pertinaz.
[…]
(pp. 9-10)

Até romper o último vínculo
            […]
            Na véspera da partida deu-me uma gripe com bastante febre, o que provocou um dia de atraso na nossa saída de Bahia Blanca. Por fim partimos às três da tarde, aguentando um sol de chumbo que se fez mais pesado ainda, ao chegarmos aos areais de Médanos. A mota, com o seu peso tão mal distribuído, escapava ao controlo do condutor e ia sistematicamente ao chão. Alberto travava um porfiado duelo com o areal, de que diz ter saído vitorioso; o certo é que seis vezes ficámos descansando comodamente na areia, antes de partir por caminho liso. Naturalmente que saímos dali, e esse é o principal argumento que o meu companheiro esgrime, para objectivar o seu triunfo sobre as dunas de Médanos.
Assim que saímos, tomei o comando e acelerei para recuperar o tempo perdido; uma areiazinha fina cobria certa parte da curva e, está-se mesmo a ver: foi o trambolhão mais forte que demos em toda a viagem. Alberto saiu ileso mas o cilindro prendeu-me um pé, chamuscando-o um pouco e deixando a sua desagradável recordação durante muito tempo, já que a ferida não cicatrizava.
Desabou sobre nós uma forte chuvada que nos obrigou a procurar refúgio numa quinta, mas para isso tivemos de percorrer trezentos metros de um caminho lamacento que nos lançou mais duas vezes ao chão.
A recepção foi magnífica, mas o balanço destes primeiros passos em estradas não pavimentadas era realmente alarmante; nove malhanços num dia. No entanto, estendidos nos catres que agora seriam os nossos legítimos leitos, junto à Poderosa, como caracóis com a casa costas, víamos o futuro com impaciente alegria. Parecia que respirávamos mais livremente um ar mais leve que vinha do lado de lá, da aventura. Países remotos, feitos heróicos, mulheres bonitas, passavam em círculo pela nossa imaginação turbulenta; e pelos olhos cansados que se negavam, contudo, ao sonho, um par de pontos verdes, síntese de um mundo morto, riam-se da minha pretendida libertação, associando o rosto a que pertenciam ao meu voo fabuloso pelos mares e terras deste mundo.
(p. 14)

San Martín dos Andes
            […]
            Depois disso, sentimos muita vontade de ficar nalguns sítios formidáveis, mas só a selva amazónica bateu tanto e tão forte às portas do nosso Eu sedentário. Agora sei, quase com uma fatalista conformação, que a minha sina é viajar, a nossa sina, melhor dito, porque Alberto nisso é igual a mim; no entanto, há momentos em que penso com profundo anseio nas maravilhosas regiões do nosso Sul. Talvez um dia, cansado de rodar pelo mundo, volte a instalar-me nesta terra argentina e então, se não como morada definitiva, pelo menos como lugar de trânsito para outra concepção do mundo, visitarei novamente e habitarei a zona dos lagos das cordilheiras.
            […]
(p. 19)

Quilometragem árida
            Já com o cantil quase vazio, o problema de nos internarmos a pé[3] naquele deserto agravava-se muito. No entanto, avançámos sem apreensões, deixando para trás a barreira que marca o limite da cidade de Chuquimata. O nosso passo foi muito atlético enquanto estivemos ao alcance do olhar dos moradores do lugar, mas pouco depois, a vasta solidão dos Andes pelados, o sol que nos caía a pino sobre as cabeças, o peso das mochilas mal distribuído chamaram-nos à realidade. Não sabíamos até que ponto era heróica a nossa posição, como a qualificara um dos carabineiros, mas começávamos a suspeitar, e creio que com fundamento, que a palavra definidora devia andar perto do adjectivo estúpido.
            Ao fim de duas horas de caminho, 10 quilómetros no máximo, assentámos arraiais à sombra de um marco que assinalava qualquer coisa, único objecto capaz de nos oferecer algum abrigo contra os raios do sol. E ali permanecemos todo o dia, movendo-nos de maneira a receber a sombra do pau, pelo menos nos olhos.
            O litro de água que levávamos foi rapidamente consumido e ao entardecer, com a garganta seca, completamente vencidos, tomámos o caminho para a guarita que guardava a barreira.
            Passámos a noite ali mesmo, refugiados no exíguo recinto, onde um fogo bastante vivo mantinha a temperatura agradável, apesar do frio que fazia lá fora. O guarda, com a proverbial amabilidade chilena, obsequiou-nos com a sua comida, magro festim para um dia inteiro de jejum, mas melhor que nada.
            […]
(p. 52)

Pelo centro peruano
            A nossa viagem continuava da mesma forma, alimentando-nos nós de vez em quando, sempre que alguma alma caritativa se apiedava da nossa indigência. Mas nunca era muito o que comíamos e o deficit agravou-se quando à noite nos avisaram que não se podia passar porque tinha havido um desmoronamento. De modo que ficámos numa aldeiazinha chamada Anco. No dia seguinte cedo empreendemos a marcha, montados no camião, mas um pouco mais adiante lá estava o desmoronamento. Ali ficámos todo o dia, famintos e curiosos, observando os trabalhos executados para fazer ir pelos ares as enormes pedras caídas no caminho. Por cada operário, havia pelo menos cinco capatazes, afadigados a partilhar opiniões e prejudicando de todas as formas a tarefa dos dinamitadores, que também não eram nenhuns trabalhadores modelo.
            […]
(pp. 90-91)

O dia de São Guevara
            No sábado 14 de Junho de 1952, eu, fulano insignificante, completei 24 anos, à beira do transcendental quarto de século, das bodas de prata com a vida, que não me tratou assim tão mal, afinal de contas. Fui ao rio cedo, para tentar mais uma vez a sorte com os peixes, mas este desporto é como o jogo: o que começa por ganhar acaba perdendo. Pela tarde, jogámos uma partida de futebol em que ocupei o meu habitual lugar de guarda-redes, com melhor resultado que nas vezes anteriores. À noite, depois de passar por casa do doutor Bresciani, que nos presenteou com uma rica e abundante refeição, receberam-nos no nosso refeitório com a bebida nacional, o pisco, de cujos efeitos no sistema nervoso central Alberto tem experiência exacta. Já com os ânimos um tanto alegrados, o director da colónia[4] fez-nos um brinde muito simpático e eu, já meio “piscado”, elaborei mais ou menos o discurso que se segue:
            “Bom, é uma obrigação para mim agradecer com algo mais que com um gesto convencional o brinde que nos oferece o Dr. Bresciani. Nas condições precárias em que viajámos, só nos resta a palavra como recurso da expressão afectiva, e é empregando-a que quero manifestar o meu agradecimento, e o do meu companheiro de viagem, a todo o pessoal da colónia que, quase sem nos conhecer, nos proporcionou esta magnífica demonstração de afecto, que significa para nós a deferência de festejar o nosso aniversário, como se fosse a festa íntima de algum de vós. Mas há algo mais; dentro de poucos dias deixaremos o território peruano, e por isso estas palavras assumem um segundo significado, o de uma despedida. Aqui ponho todo o meu empenho em expressar o nosso reconhecimento a todo o povo deste país, que sempre nos cumulou de amabilidades, desde a nossa chegada a Tacna. Quero salientar mais uma coisa, um pouco à margem do tema deste brinde: ainda que a modéstia das nossas pessoas nos impeça de ser porta-vozes de tal causa, cremos, e depois desta viagem mais firmemente que antes, que é completamente fictícia a divisão da América em nacionalidades incertas e ilusórias. Constituímos uma só raça mestiça que, desde o México até ao estreito de Magalhães, apresenta notáveis semelhanças etnográficas. Por isso, procurando libertar-me de toda a carga de provincialismo estreito, brindo pelo Peru e pela América Unida.”
(pp. 110-111)

Che Guevara (1996). Viagem pela América. Lisboa: Edições Dinossauro.

Notas nossas:


[1] A motocicleta com que empreenderam parte da viagem, uma Norton 500 cc. fabricada em 1939.
[2] O cão que com eles partilhou o início da aventura.
[3] Por esta altura a Poderosa deixou já de lhes fazer companhia.
[4] Os dois viajantes encontram-se nesta altura na leprosaria de San Pablo (Peru) – recorde-se que Guevara era finalista de medicina.


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